quinta-feira, 11 de outubro de 2012

TUNAS POPULARES

 

Tem o fenómeno das tunas sido alvo de pouca atenção por parte dos estudos etnográfico-musicais em Portugal. Nas gravações e nos escritos de Armando Leça não encontramos referência a tunas, o mesmo se podendo dizer das obras de Artur Santos e de Michel Giacometti/Fernando Lopes Graça.
Ernesto Veiga de Oliveira é o primeiro a mencionar este tipo de agrupamento musical popular, dedicando-lhe porém uma pequena secção, no capítulo dos cordofones, do seu vasto estudo sobre os Instrumentos Musicais Populares Portugueses .
 
A escassez de estudos profundos sobre o fenómeno das tunas rurais portuguesas remetia-as para uma zona lateral, ou mesmo inferior, em relação à música de tradição oral. Mas, em contrapartida, ao longo de muitos anos de pesquisa etnomusical por todos os recantos do país, fomos encontrando, aqui e ali, algumas tunas rurais que despertaram o nosso interesse e foram, por isso, objecto de gravação para arquivo. Esse interesse não era, todavia, muito forte, na medida em que, por essa altura, partilhávamos da opinião dominante sobre a falta de valor tradicional do reportório destes agrupamentos, por se tratar de música de autor transmitida através da pauta. Tratava-se antes da constatação de que a sua música exercia um papel importante nas comunidades rurais em que as tunas estavam inseridas, pelo que era preciso registá-la como documento. A pouco e pouco, porém, fomos despertando para a necessidade de entender, de estudar e dar a conhecer esses grupos populares de cordas que animavam, e continuam animando, a vida do nosso povo e que um pouco por todo o lado nos surgiam e íamos gravando. Mas, por enquanto, a nossa prioridade não era essa. Por força das dificuldades em editar trabalhos etnográfico-musicais, preferíamos dar a público os géneros musicais tradicionais considerados mais arcaicos, e assim chegámos aos dias de hoje, com alguns registos sonoros de tunas recolhidos em diversas regiões, mas que estavam esquecidos no nosso arquivo, destinados talvez a ali jazerem preteridos por outros géneros a que a investigação tem dado mais relevo – e nós próprio, aliás, também.
 
Com a criação da colecção Sons da Tradição , tornou-se finalmente viável publicar um estudo profundo sobre as tunas rurais e começámos então a ordenar as gravações que havíamos feito no passado, a efectuar mais profunda pesquisa no terreno, com novas gravações e entrevistas. Pudemos, assim, chegar a este momento e, desta vez, optar, de entre os diversos géneros que compõem o nosso arquivo etnomusical, por dedicar um estudo específico sobre a música das tunas rurais. Como dissemos, é assunto pouco tratado, pouco conhecido, e, precisamente por isso, merece estudo, reflexão e divulgação. As recolhas de música tradicional portuguesa mais conhecidas (Artur Santos, Lopes Graça/Michel Giacometti e as nossas próprias), bem como as ainda por publicar (Kurt Schindler e Armando Leça, visto que as de Ernesto Veiga de Oliveira apresentam um carácter ligeiramente diferente, dada a especial natureza da sua investigação, direccionada para a música instrumental), têm preferencialmente como objecto um género de música rural que poderemos designar, para maior facilidade de entendimento, como “arcaica” ou “antiga”, de certo modo resultante de uma visão romântica segundo a qual a música do povo proviria da noite dos tempos conservada pura até hoje como um fundo ou substracto imutável, que constituiria, do ponto de vista musical, a “genuína” alma nacional. Daí que o público em geral, e mesmo o mais interessado, tenha ainda hoje da música rural uma ideia de primitivismo, de pureza intemporal, de força telúrica, que traz consigo uma impressão de exotismo musical, de carácter pouco acessível, mais próximo das supostas raízes, que se presumem profundas, do que da superficialidade de muitos outros géneros musicais.
 
Parece-nos hoje importante ajudar a alterar esta perspectiva.
 
A música tradicional está em permanente mutação. Não existe tal coisa como a música genuína, intemporal, conservada intacta desde há séculos, como se estivesse isolada da sociedade e das transformações de hábitos e costumes que se vão operando ao longo dos tempos. Bem ao contrário, a música tradicional é um género dos mais mutáveis, recebendo e adoptando constantemente novas contribuições exteriores, as quais, depois de assimiladas e testadas pelo tempo (no sentido de permanecerem, por fazerem sentido, funcionalmente falando, para a vida das comunidades em questão), passam também elas a fazer parte do corpo musical tradicional. Trata-se, pois, de um género musical permanentemente contaminado, receptivo a influências e transformações provindas de outras camadas sociais, de outras terras, de novos tempos com novos hábitos. O reportório musical das tunas é um bom exemplo desse tipo de contribuição. Quantas modas populares tradicionais são, na verdade, adaptações, por vezes simples cópias, de marchas e valsas? E de contradanças, polcas e mazurcas? O que é o corridinho, senão uma chotiça, que por sua vez é uma polca mais lenta criada em meados do séc.XIX na Europa Central e vinda até nós através do teatro musical e de agrupamentos musicais aparentados, ou do género, das tunas? E o que é a moda de dois passos (nalguns sítios conhecida por valsa de dois passos) senão uma mazurca? Estes e outros exemplos justificam plenamente que, para um perfeito conhecimento das músicas que circulam na tradição oral rural, sobretudo das modas bailadas, e das suas origens, seja essencial o estudo comparativo do reportório das bandas filarmónicas e das tunas.
 
O fenómeno das tunas, como grupos musicais organizados, teve nascimento na segunda metade do séc.XIX e o seu reportório tem sido desde então essencialmente constituído por aquilo que vulgarmente – e um pouco erroneamente – se designa por música ligeira, um género musical destinado ao divertimento, ao lazer, à dança. Trata-se, é seguro, de música de autor, geralmente de compositores menores que regiam bandas filarmónicas ou militares e que também se dedicavam a dirigir as tunas locais. Mas, como adiante desenvolveremos, isso não lhe retira importância no estudo da música de tradição oral, já porque toda a música que se encontra em processo de tradicionalização teve necessariamente, em dado momento histórico, o seu autor, já porque há sinais que indicam que também este tipo musical deu contribuições relevantes para o acervo actual da música tradicional portuguesa.
 
É, por todo o exposto, importante o estudo e a divulgação do fenómeno das tunas rurais. Começámos por tomar contacto com a música dessas tunas ainda na primeira metade da década de oitenta, durante as pesquisas que temos vindo a realizar um pouco por todo o país. Embora efectuando algumas gravações, não lhe atribuíamos de início muita atenção, exactamente por a considerarmos fora do conceito e do processo de tradição oral, destinando-se os registos que íamos fazendo a documentar um género musical que entendíamos exterior a esse conceito. Mas o interesse que ela tem para as comunidades onde persiste acabou por nos levar a estudar e entender o fenómeno, bem como a tentar alcançar o seu papel no campo geral das músicas populares e as suas contribuições para a música de tradição oral em especial. Como adiante explicaremos, até um pouco além do meado do séc.XX, viveu-se por todo o país um furor, uma paixão pelos agrupamentos instrumentais de cordas, tanto nas vilas e cidades, como nas mais recônditas aldeias. Quase não haveria uma freguesia do país onde não tivesse existido uma tuna. Assim sendo, não é possível ignorar a importância deste movimento musical, como não é também possível negar que os géneros musicais por ele interpretados tenham exercido influência sobre a música rural. É igualmente matéria que adiante desenvolveremos.
(...)
 
in   Tunas do Marão, José Alberto Sardinha, TRADISON.
 Aqui bem perto ainda pudemos ouvir a Tuna Popular da Lousa. Será que se vai perder por completo esta forma de animar as aldeias? A ver se não...

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